Coisas do Cinema-O sublime
Deixo-vos com um excerto de um state-of-art;
Cinema e Arquitectura - A Dialéctica das cumplicidades
1.2 – A intensidade psicológica e a ideia de sublime
Question: What is the deep logic of your films?
Hitch’s answer: To make the spectator suffer.
Existem, para todos nós, momentos de extrema beleza. Esses momentos podem acontecer, e geralmente acontecem, por acaso. A arte não é, de forma nenhuma, o único veículo que os proporciona, mas proporcioná-los é um dos seus grandes objectivos.
Quando, há um tempo, lia o Thinking Architecture, de Peter Zumthor, surpreendeu-me a perfeição da expressão aplicada para definir esses momentos: The Hard Core of Beauty. Pareceu-me a forma mais estimulante de definir aquilo que persigo, quando faço projecto de arquitectura.
Existem momentos em cinema, tal como na arquitectura, que vibram com esta intensidade; para não falar dos filmes de Tarkovsky, quem não se recorda de Shangri-la do Lost Horizon, de Frank Capra? Quem não se recorda da cena introdutória do 8 e Mezzo, de Fellini? Quem não se recorda dos sapos a choverem do céu do Magnólia, de Paul Anderson?
A intensidade destes registos encontra paralelos na arquitectura, exemplos disso são as grandes pirâmides do Egipto, a Ópera de Sydney, ou a casa da cascata de Frank Lloyd Wright. De alguma forma, é possível criar coisas que quase universalmente se tornam sublimes e, portanto, imperecíveis na memória de todos nós; na memória da nossa cultura. Estas imagens, partilhadas por cinema e arquitectura, são o objecto de análise neste ponto.
Quando falo de sublime, não falo apenas no positivismo da beleza; é muito mais abrangente que isso. Entendo o sublime como a forma mais interessante e, se quisermos, genial, de mostrar uma determinada imagem. E, nesta perspectiva, é tão possível chamar sublime ao momento em as duas mulheres do Mullholand Drive se beijam, como ao momento (passo a expressão...) da violação no Irreverssible; é tão possível chamar sublime às termas em Vals, Suíça, de Zumthor, como à zona industrial Norte do Parque das Nações.
Uma (outra) das coisas que aprendi com Manuel Vicente é que o caminho para o sublime encontra-se lidando com os aspectos circunstanciais do espaço; das pré-existências pode aproveitar-se o mau, o banal e o bom para fazer arquitectura. Normalmente, o bom conserva-se, o banal exponencia-se, e o mau assume-se. Um excelente exemplo desta forma de projectar é o projecto para reordenamento...em..., de Steven Holl. Um simples pórtico de betão é a síntese para a cor do caos, a ordem possível dentro deste, e para este em si. Esta amplificação estética também acontece no cinema, por exemplo no Psycho, de Hitchcock, onde a partir de uma composição simples de um bloco vertical (a casa pseudo-gótica) e um bloco horizontal (o motel) estabelece a atmosfera perfeita para o suspense pretendido no desenrolar da acção; balança uma atmosfera idílico-relaxada com outra assustadora, por ser enigmática.
Manuel Vicente acrescenta que este savez faire, tem muito que ver com o savez vivre ; cita uma passagem do Saint Genet, de Sartre, onde este pergunta àquele porque é que, sendo uma pessoa tão criativa e artisticamente competente, continua a lavar sanitários em móteis. Jean Jenet responde que para ele está tudo bem como está, pois sendo homossexual em tempos de censura, aquele é o único espaço onde pode, legitimamente, ter contactos eróticos com pessoas do mesmo sexo; Eu adoro o cheiro dos urinóis!
Isto para reforçar a ideia de que o mau, não é necessariamente mau, e que, muitas vezes pelo veículo de uma doce perversão, é possível torná-lo numa coisa sublime.
Passemos a uma análise mais racional.
Karsten Harries defende que: Architecture is not only about domesticating space, it is also a deep defense against the terror of time. The language of beauty is essentially the language of timeless reality.
Este é o patamar terreno do sublime; se algo for estimulante para nos alienar na nossa alienação e exterioridade naturais, então podemos, desde logo, considerá-lo estético. Mas o sublime, ainda que podendo resultar de um forte conjunto de estética terrena (chamemos-lhe assim), tem que ver com a estética extra-terrena; com a nossa capacidade alucinatória de delírio. Para isso, é necessário existirem dispositivos que activem a nossa imaginação, tanto, que fiquemos totalmente absorvidos com a nossa comoção; I can no longer think what I want to think. My thoughts have been replaced by moving images, para citar uma frase de Georger Duhamel.
Por outro lado, são necessários dispositivos que conservem essa abstracção, pois o sublime é frágil, como todos os outros estados que não correspondam à natural condição humana. Para ilustrar esta fragilidade, existe um poema sublime da Mensagem de Fernando Pessoa:
As ilhas afortunadas
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.
Juhani Pallasmaa menciona um dado importante: The great mystery of artistic impact is that a fragment is capable of representing the whole.
Este aspecto pode ser, evidentemente, um amigo ou um inimigo do sublime. Creio que, aqui, faz sentido introduzir o conceito de musicalidade. O sublime também vive como uma sinfonia; necessita de ser composto e harmonizado; o ritmo é fundamental para o correcto dimensionamento estético e para o continuum do sublime.
Outra situação que este autor refere é: The value of a great film is not in the images projected in front of our eyes, but in the images and feelings that the film entices from our soul. e continua, com um comentário de Fritz Lang ao seu filme M: There is no violence in my film M, or when there is, it occurs behind the scenes, as it were. Let's take an example. You will remember the sequence where a little girl is murdered. All you see is a ball rolling and then stopping. Then a balloon flying off and getting caught in some telephone wires (...) The violence is in your mind.
Não descurando o valor do que se encontra escrito, gostaria de acrescentar que é possível seduzir as imagens e sentimentos da nossa alma com imagens cruas e violentas; há imagens que a nossa alma simplesmente (ainda) não tem...a violência pode ser sublime, muito embora – infelizmente – seja muitas vezes utilizada de forma gratuita; tanto na arquitectura como no cinema. Seria possível imaginar o sublime final de Boys don’t Cry sem o recurso às chocantes imagens? Qual o tamanho da diferença entre uma pessoa que imagina Auschwitz, para uma outra que já lá tenha estado?
O sublime não é aquilo a que se chama uma teoria; e tão-pouco é algo que se possa sistematizar. Resulta antes da boa combinação de todos os factores que, juntos, tornam uma obra complexa. No sublime não há razão; nem para quem cria, nem para quem lê. O sublime está no mundo, à espera que alguém o descubra e, portanto, não se inventa; ele existe. É a descoberta daquilo que temos e que não sabemos; é a exponencial dos nossos sentidos; é, em limite, a nossa vulnerabilidade.
2 Comentários:
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o que eu estava procurando, obrigado
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