Coisas da Literatura - Atonement
Fica aquilo que, em vez de chamar "um longo post", prefiro chamar "um alargado deleite".
Deliciem-se:
"Pensou que ela estaria prestes a revelar a existência de um obstáculo intransponível - alguém, obviamente - mas ela não percebeu. Ficou sem saber o que responder e olhou para ele, bastante confusa. Por que estava a chorar? Como poderia dizer-lhe se estava completamente dominada pela emoção, por muitas emoções? Robbie por sua vez, pensou que a pergunta era injusta, desajustada e tentou descobrir uma maneira de a reformular. Olharam um para o outro, desorientados, sem conseguirem falar, sentindo que algo cuidadosamente estabelecido entre eles poderia fugir-lhes. O facto de serem amigos que tinham partilhado a infância constituía agora uma barreira - estavam embaraçados com o que tinham sido. Nos últimos anos a sua amizade tinha-se tornado vaga e até um pouco forçada, mas continuava a ser um velho hábito, e quebrá-lo agora para se tornarem desconhecidos em termos íntimos obrigava a um discernimento total relativamente aos seus objectivos, que os tinha temporariamente abandonado. De momento, parecia não haver saída possível através das palavras.
Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e sentiu a frescura da sua pele desnudada. Quando os seus rostos se aproximaram, Robbie não sabia ao certo se devia pensar que ela iria fugir ou, como nos filmes, dar-lhe uma bofetada na cara com a mão bem aberta. A boca dela sabia a batom e a sal. Afastaram-se por um segundo e, depois, ele rodeou-a com os braços e voltaram a beijar-se, já com mais confiança. Encostaram temerariamente as suas línguas, e foi nesse momento que ela emitiu o som descendente, ciciado que, como mais tarde Robbie compreendeu, marcou a transformação. Até esse momento, tinha continuado a haver qualquer coisa de ridículo em ter um rosto familiar tão perto do seu. Sentiam-se observados pelas crianças que tinham sido. Mas o contacto das línguas, daquele músculo vivo e escorregadio, daquela carne húmida, e o som estranho que esse contacto provocou nela, mudaram tudo. Foi como se aquele som tivesse penetrado nele, como se o tivesse rasgado, deixando o seu corpo aberto, e ele tivesse podido então sair de dentro de si e beijá-la livremente. O que anteriormente tinha sido consciente era agora impessoal, quase abstracto. O suspiro que ela tinha dado tinha sido impetuoso e tinha-o deixado insaciável. Empurrou-a mais para o canto, entre os livros. Enquanto se beijavam, ela começou a puxar-lhe a roupa, a tentar desabotoar-lhe a camisa e tirar-lhe o cinto, mas sem efeito. Inclinaram as cabeças e encostaram ainda mais o rosto um ao outro, ao mesmo tempo que o beijo se tornou devorador. Cecília deu-lhe uma dentada na maçã do rosto, não totalmente por brincadeira. Ele afastou-se, depois voltou a aproximar-se dela, e ela mordeu-lhe no lábio inferior. Depois ele beijou-a no pescoço, encostando-lhe a cabeça às prateleiras, e ela agarrou-o pêlos cabelos e afundou-lhe a cara nos seios. Ele tacteou um pouco, por inexperiência, até encontrar o mamilo dela, pequeno e duro, que rodeou com os lábios. Ela ficou rígida, muito direita, mas depois estremeceu de alto a baixo. Por momentos, Robbie pensou que ela se tivesse descontrolado. Cecilia tinha os braços à volta da cabeça dele e, quando os cerrou mais, ele foi obrigado e levantar a cara para poder respirar. Depois abraçou-a, puxando-lhe a cabeça contra o seu peito. Ela tornou a morder-lhe e puxou-lhe a camisa. Quando ouviram um botão a cair no chão, tiveram de suprimir o sorriso rasgado que ostentavam e desviar a cara. A comédia tê-los-ia destruído. Cecilia prendeu o mamilo dele entre os dentes, provocando uma sensação insuportável. Robbie levantou-lhe a cara e, prendendo-a contra si, beijou-lhe os olhos e entreabriu-lhe os lábios com a língua. Cecilia abandonou-se, fazendo outra vez o mesmo som, como se fosse um suspiro de desilusão.
Eram finalmente desconhecidos; tinham esquecido os seus passados. Também eram desconhecidos para si próprios, esquecendo quem eram ou onde estavam. A porta da biblioteca era espessa, pelo que nenhum dos sons habituais que pudesse tê-los alertado ou impedido de continuarem poderia chegar até eles. Estavam para lá do presente, fora do tempo, sem recordações nem futuro. Não havia nada a não ser uma sensação obliterante, excitante e gratificante, e o som do tecido a roçar no tecido, e da pele a roçar no tecido, enquanto os seus membros deslizavam uns contra os outros, num combate inquieto e sensual. Robbie era pouco experiente e só por relatos de terceiros é que sabia que não precisavam de se deitar. Quanto a ela, Para além de todos os filmes que tinha visto, e de todos os romances e poemas líricos que tinha lido, não tinha qualquer experiência. Apesar destas limitações, não os surpreendeu a clareza com que conheciam as suas necessidades. Estavam outra vez a beijar-se. Cecília tinha os braços por detrás da cabeça dele e estava a lamber-lhe a orelha e a mordiscar-lhe o lobo. Estas dentadas excitavam-no e, ao mesmo tempo, enraiveciam-no, acicatavam-no. Sentiu as nádegas dela por baixo do vestido e apertou-as com força, tentando voltar-se de lado para lhe dar uma palmada retaliatória, mas sem conseguir espaço suficiente. Com os olhos fixos nos dele, baixou-se para tirar os sapatos. Voltou a mexer-se desajeitadamente, para abrir botões e posicionar braços e pernas. Não tinha qualquer experiência. Sem falar, ele guiou o pé dela para a prateleira de baixo. Eram desajeitados, mas também naquele momento demasiado soltos para se sentirem envergonhados. Quando Robbie lhe levantou de novo o vestido justo de seda, sentiu que a incerteza que pairava no olhar dela reflectia a sua própria incerteza. Mas havia um único fim inevitável, e não podiam fazer nada a não ser avançar para ele.
Apoiada no canto das prateleiras pelo peso dele, Cecília voltou a pôr as mãos atrás do pescoço de Robbie, descansou os cotovelos no ombro dele e continuou a beijar-lhe o rosto. O momento propriamente dito foi fácil. Sustiveram a respiração antes de a membrana se rasgar e, quando isso aconteceu, ela voltou-se rapidamente, mas sem deixar escapar nenhum som - parecia um motivo de orgulho. Aproximaram-se mais e depois, durante alguns segundos, tudo parou. Em vez de um momento de loucura extática, houve quietude. Ficaram imobilizados não pelo facto espantoso de alguém ter chegado, mas por uma estranha sensação de regresso - estavam cara a cara, na penumbra, a olharem fixamente para o pouco que conseguiam ver do rosto um do outro, e agora era a sensação de impessoalidade que desaparecia. Claro que não havia nada de impessoal numa cara. O filho de Grace e Ernest Turner, a filha de Emily e Jack Tallis, amigos de infância, colegas da universidade, num estado de alegria expansiva e tranquila, foram confrontados com a profunda mudança que tinham sofrido. A proximidade de um rosto familiar não era ridícula; era inconcebível. Robbie olhou para a mulher, para a rapariga que sempre conhecera, pensando que a mudança estava nele próprio e era tão fundamental, tão fundamentalmente biológica, como o nascimento. Desde o dia em que nascera que nada de tão singular ou importante lhe tinha acontecido. Ela olhou-o da mesma forma intensa, dominada pela sensação da sua própria transformação e pela beleza de um rosto que um hábito de toda uma vida a ensinara a ignorar. Sussurrou o nome dele com a determinação de uma criança que tenta identificar sons distintos. Quando ele respondeu com o nome dela, pareceu-lhe ser uma palavra inteiramente nova - as sílabas eram as mesmas, mas o significado era diferente. Por fim, ele proferiu as duas palavras que nem um gesto de arte menor nem de falta de fé poderão jamais depreciar. Ela repetiu-as, com a mesma ênfase no pronome, como se tivesse sido ela a dizê-las em primeiro lugar. Ele não era crente, mas era impossível não pensar na presença de uma testemunha invisível naquela sala, perante a qual aquelas palavras estavam a ser ditas em voz alta como assinaturas num contrato invisível.
Ficaram imóveis durante talvez meio minuto. Mais tempo do que seria necessário para o domínio de uma arte tântrica formidável. Começaram a fazer amor encostados às prateleiras da biblioteca que rangiam com o movimento deles. É bastante comum nesses momentos a fantasia de que se está a chegar a um lugar distante e elevado. Robbie imaginou-se a passear pelo cume arredondado e suave de uma montanha, suspenso entre dois picos mais altos. Caminhava sem pressas, com um espírito observador, e com tempo suficiente para se aproximar de uma escarpa rochosa e olhar para a ladeira quase vertical que daí a pouco tempo teria de descer. Sentia-se tentado a atirar-se para o vazio, mas era um homem do mundo, pelo que podia ir-se embora e esperar. Não era fácil, porque estava a ser puxado para trás e tinha de resistir. Desde que não pensasse no precipício, não se aproximaria dele e não seria tentado. Obrigou-se a pensar nas coisas mais desinteressantes que conhecia - graxa para sapatos, um formulário, uma toalha molhada no chão do seu quarto. Havia também a tampa de um caixote do lixo voltada ao contrário, com alguns centímetros de água da chuva lá dentro, e a marca incompleta de uma chávena de chá na capa do seu livro de poemas de Housman. O inventário precioso foi interrompido pelo som da voz dela. Estava a interpelá-
-lo, a convidá-lo, a murmurar ao ouvido dele. Exactamente isso. Saltariam juntos. Estava com ela, a espreitar para um abismo, conseguindo ver a ladeira a desaparecer por entre as nuvens. Atirar-se-
-iam de costas, de mãos dadas. Ela repetiu a mesma frase, segredando-lhe ao ouvido, mas desta vez ele conseguiu ouvi-la claramente: - Entrou alguém."
Expiação, Ian McEwan
Deliciem-se:
"Pensou que ela estaria prestes a revelar a existência de um obstáculo intransponível - alguém, obviamente - mas ela não percebeu. Ficou sem saber o que responder e olhou para ele, bastante confusa. Por que estava a chorar? Como poderia dizer-lhe se estava completamente dominada pela emoção, por muitas emoções? Robbie por sua vez, pensou que a pergunta era injusta, desajustada e tentou descobrir uma maneira de a reformular. Olharam um para o outro, desorientados, sem conseguirem falar, sentindo que algo cuidadosamente estabelecido entre eles poderia fugir-lhes. O facto de serem amigos que tinham partilhado a infância constituía agora uma barreira - estavam embaraçados com o que tinham sido. Nos últimos anos a sua amizade tinha-se tornado vaga e até um pouco forçada, mas continuava a ser um velho hábito, e quebrá-lo agora para se tornarem desconhecidos em termos íntimos obrigava a um discernimento total relativamente aos seus objectivos, que os tinha temporariamente abandonado. De momento, parecia não haver saída possível através das palavras.
Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e sentiu a frescura da sua pele desnudada. Quando os seus rostos se aproximaram, Robbie não sabia ao certo se devia pensar que ela iria fugir ou, como nos filmes, dar-lhe uma bofetada na cara com a mão bem aberta. A boca dela sabia a batom e a sal. Afastaram-se por um segundo e, depois, ele rodeou-a com os braços e voltaram a beijar-se, já com mais confiança. Encostaram temerariamente as suas línguas, e foi nesse momento que ela emitiu o som descendente, ciciado que, como mais tarde Robbie compreendeu, marcou a transformação. Até esse momento, tinha continuado a haver qualquer coisa de ridículo em ter um rosto familiar tão perto do seu. Sentiam-se observados pelas crianças que tinham sido. Mas o contacto das línguas, daquele músculo vivo e escorregadio, daquela carne húmida, e o som estranho que esse contacto provocou nela, mudaram tudo. Foi como se aquele som tivesse penetrado nele, como se o tivesse rasgado, deixando o seu corpo aberto, e ele tivesse podido então sair de dentro de si e beijá-la livremente. O que anteriormente tinha sido consciente era agora impessoal, quase abstracto. O suspiro que ela tinha dado tinha sido impetuoso e tinha-o deixado insaciável. Empurrou-a mais para o canto, entre os livros. Enquanto se beijavam, ela começou a puxar-lhe a roupa, a tentar desabotoar-lhe a camisa e tirar-lhe o cinto, mas sem efeito. Inclinaram as cabeças e encostaram ainda mais o rosto um ao outro, ao mesmo tempo que o beijo se tornou devorador. Cecília deu-lhe uma dentada na maçã do rosto, não totalmente por brincadeira. Ele afastou-se, depois voltou a aproximar-se dela, e ela mordeu-lhe no lábio inferior. Depois ele beijou-a no pescoço, encostando-lhe a cabeça às prateleiras, e ela agarrou-o pêlos cabelos e afundou-lhe a cara nos seios. Ele tacteou um pouco, por inexperiência, até encontrar o mamilo dela, pequeno e duro, que rodeou com os lábios. Ela ficou rígida, muito direita, mas depois estremeceu de alto a baixo. Por momentos, Robbie pensou que ela se tivesse descontrolado. Cecilia tinha os braços à volta da cabeça dele e, quando os cerrou mais, ele foi obrigado e levantar a cara para poder respirar. Depois abraçou-a, puxando-lhe a cabeça contra o seu peito. Ela tornou a morder-lhe e puxou-lhe a camisa. Quando ouviram um botão a cair no chão, tiveram de suprimir o sorriso rasgado que ostentavam e desviar a cara. A comédia tê-los-ia destruído. Cecilia prendeu o mamilo dele entre os dentes, provocando uma sensação insuportável. Robbie levantou-lhe a cara e, prendendo-a contra si, beijou-lhe os olhos e entreabriu-lhe os lábios com a língua. Cecilia abandonou-se, fazendo outra vez o mesmo som, como se fosse um suspiro de desilusão.
Eram finalmente desconhecidos; tinham esquecido os seus passados. Também eram desconhecidos para si próprios, esquecendo quem eram ou onde estavam. A porta da biblioteca era espessa, pelo que nenhum dos sons habituais que pudesse tê-los alertado ou impedido de continuarem poderia chegar até eles. Estavam para lá do presente, fora do tempo, sem recordações nem futuro. Não havia nada a não ser uma sensação obliterante, excitante e gratificante, e o som do tecido a roçar no tecido, e da pele a roçar no tecido, enquanto os seus membros deslizavam uns contra os outros, num combate inquieto e sensual. Robbie era pouco experiente e só por relatos de terceiros é que sabia que não precisavam de se deitar. Quanto a ela, Para além de todos os filmes que tinha visto, e de todos os romances e poemas líricos que tinha lido, não tinha qualquer experiência. Apesar destas limitações, não os surpreendeu a clareza com que conheciam as suas necessidades. Estavam outra vez a beijar-se. Cecília tinha os braços por detrás da cabeça dele e estava a lamber-lhe a orelha e a mordiscar-lhe o lobo. Estas dentadas excitavam-no e, ao mesmo tempo, enraiveciam-no, acicatavam-no. Sentiu as nádegas dela por baixo do vestido e apertou-as com força, tentando voltar-se de lado para lhe dar uma palmada retaliatória, mas sem conseguir espaço suficiente. Com os olhos fixos nos dele, baixou-se para tirar os sapatos. Voltou a mexer-se desajeitadamente, para abrir botões e posicionar braços e pernas. Não tinha qualquer experiência. Sem falar, ele guiou o pé dela para a prateleira de baixo. Eram desajeitados, mas também naquele momento demasiado soltos para se sentirem envergonhados. Quando Robbie lhe levantou de novo o vestido justo de seda, sentiu que a incerteza que pairava no olhar dela reflectia a sua própria incerteza. Mas havia um único fim inevitável, e não podiam fazer nada a não ser avançar para ele.
Apoiada no canto das prateleiras pelo peso dele, Cecília voltou a pôr as mãos atrás do pescoço de Robbie, descansou os cotovelos no ombro dele e continuou a beijar-lhe o rosto. O momento propriamente dito foi fácil. Sustiveram a respiração antes de a membrana se rasgar e, quando isso aconteceu, ela voltou-se rapidamente, mas sem deixar escapar nenhum som - parecia um motivo de orgulho. Aproximaram-se mais e depois, durante alguns segundos, tudo parou. Em vez de um momento de loucura extática, houve quietude. Ficaram imobilizados não pelo facto espantoso de alguém ter chegado, mas por uma estranha sensação de regresso - estavam cara a cara, na penumbra, a olharem fixamente para o pouco que conseguiam ver do rosto um do outro, e agora era a sensação de impessoalidade que desaparecia. Claro que não havia nada de impessoal numa cara. O filho de Grace e Ernest Turner, a filha de Emily e Jack Tallis, amigos de infância, colegas da universidade, num estado de alegria expansiva e tranquila, foram confrontados com a profunda mudança que tinham sofrido. A proximidade de um rosto familiar não era ridícula; era inconcebível. Robbie olhou para a mulher, para a rapariga que sempre conhecera, pensando que a mudança estava nele próprio e era tão fundamental, tão fundamentalmente biológica, como o nascimento. Desde o dia em que nascera que nada de tão singular ou importante lhe tinha acontecido. Ela olhou-o da mesma forma intensa, dominada pela sensação da sua própria transformação e pela beleza de um rosto que um hábito de toda uma vida a ensinara a ignorar. Sussurrou o nome dele com a determinação de uma criança que tenta identificar sons distintos. Quando ele respondeu com o nome dela, pareceu-lhe ser uma palavra inteiramente nova - as sílabas eram as mesmas, mas o significado era diferente. Por fim, ele proferiu as duas palavras que nem um gesto de arte menor nem de falta de fé poderão jamais depreciar. Ela repetiu-as, com a mesma ênfase no pronome, como se tivesse sido ela a dizê-las em primeiro lugar. Ele não era crente, mas era impossível não pensar na presença de uma testemunha invisível naquela sala, perante a qual aquelas palavras estavam a ser ditas em voz alta como assinaturas num contrato invisível.
Ficaram imóveis durante talvez meio minuto. Mais tempo do que seria necessário para o domínio de uma arte tântrica formidável. Começaram a fazer amor encostados às prateleiras da biblioteca que rangiam com o movimento deles. É bastante comum nesses momentos a fantasia de que se está a chegar a um lugar distante e elevado. Robbie imaginou-se a passear pelo cume arredondado e suave de uma montanha, suspenso entre dois picos mais altos. Caminhava sem pressas, com um espírito observador, e com tempo suficiente para se aproximar de uma escarpa rochosa e olhar para a ladeira quase vertical que daí a pouco tempo teria de descer. Sentia-se tentado a atirar-se para o vazio, mas era um homem do mundo, pelo que podia ir-se embora e esperar. Não era fácil, porque estava a ser puxado para trás e tinha de resistir. Desde que não pensasse no precipício, não se aproximaria dele e não seria tentado. Obrigou-se a pensar nas coisas mais desinteressantes que conhecia - graxa para sapatos, um formulário, uma toalha molhada no chão do seu quarto. Havia também a tampa de um caixote do lixo voltada ao contrário, com alguns centímetros de água da chuva lá dentro, e a marca incompleta de uma chávena de chá na capa do seu livro de poemas de Housman. O inventário precioso foi interrompido pelo som da voz dela. Estava a interpelá-
-lo, a convidá-lo, a murmurar ao ouvido dele. Exactamente isso. Saltariam juntos. Estava com ela, a espreitar para um abismo, conseguindo ver a ladeira a desaparecer por entre as nuvens. Atirar-se-
-iam de costas, de mãos dadas. Ela repetiu a mesma frase, segredando-lhe ao ouvido, mas desta vez ele conseguiu ouvi-la claramente: - Entrou alguém."
Expiação, Ian McEwan
1 Comentários:
É bom saber que pelo menos uma pessoa achou interessante o post mais longo jamais feito neste blog.
Ainda bem que gostaste, Ana :-)
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