quinta-feira, janeiro 20, 2005

Coisas da Literatura - Atonement

Fica aquilo que, em vez de chamar "um longo post", prefiro chamar "um alargado deleite".

Deliciem-se:

"Pensou que ela estaria prestes a revelar a existência de um obs­táculo intransponível - alguém, obviamente - mas ela não perce­beu. Ficou sem saber o que responder e olhou para ele, bastante confusa. Por que estava a chorar? Como poderia dizer-lhe se estava completamente dominada pela emoção, por muitas emoções? Robbie por sua vez, pensou que a pergunta era injusta, desajustada e tentou descobrir uma maneira de a reformular. Olharam um para o outro, desorientados, sem conseguirem falar, sentindo que algo cuidadosa­mente estabelecido entre eles poderia fugir-lhes. O facto de serem amigos que tinham partilhado a infância constituía agora uma bar­reira - estavam embaraçados com o que tinham sido. Nos últimos anos a sua amizade tinha-se tornado vaga e até um pouco forçada, mas continuava a ser um velho hábito, e quebrá-lo agora para se tor­narem desconhecidos em termos íntimos obrigava a um discernimento total relativamente aos seus objectivos, que os tinha temporariamente abandonado. De momento, parecia não haver saída possível através das palavras.

Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e sentiu a frescura da sua pele desnudada. Quando os seus rostos se aproximaram, Robbie não sabia ao certo se devia pensar que ela iria fugir ou, como nos filmes, dar-lhe uma bofetada na cara com a mão bem aberta. A boca dela sabia a batom e a sal. Afastaram-se por um segundo e, depois, ele rodeou-a com os braços e voltaram a beijar-se, já com mais con­fiança. Encostaram temerariamente as suas línguas, e foi nesse mo­mento que ela emitiu o som descendente, ciciado que, como mais tarde Robbie compreendeu, marcou a transformação. Até esse mo­mento, tinha continuado a haver qualquer coisa de ridículo em ter um rosto familiar tão perto do seu. Sentiam-se observados pelas crianças que tinham sido. Mas o contacto das línguas, daquele músculo vivo e escorregadio, daquela carne húmida, e o som estranho que esse contacto provocou nela, mudaram tudo. Foi como se aquele som tivesse penetrado nele, como se o tivesse rasgado, deixando o seu corpo aberto, e ele tivesse podido então sair de dentro de si e beijá-la livremente. O que anteriormente tinha sido consciente era agora impessoal, quase abstracto. O suspiro que ela tinha dado tinha sido impetuoso e tinha-o deixado insaciável. Empurrou-a mais para o canto, entre os livros. Enquanto se beijavam, ela começou a puxar-lhe a roupa, a tentar desabotoar-lhe a camisa e tirar-lhe o cinto, mas sem efeito. Inclinaram as cabeças e encostaram ainda mais o rosto um ao outro, ao mesmo tempo que o beijo se tornou devorador. Cecília deu-lhe uma dentada na maçã do rosto, não totalmente por brincadeira. Ele afastou-se, depois voltou a aproximar-se dela, e ela mordeu-lhe no lábio inferior. Depois ele beijou-a no pescoço, encos­tando-lhe a cabeça às prateleiras, e ela agarrou-o pêlos cabelos e afundou-lhe a cara nos seios. Ele tacteou um pouco, por inexperiência, até encontrar o mamilo dela, pequeno e duro, que rodeou com os lábios. Ela ficou rígida, muito direita, mas depois estremeceu de alto a baixo. Por momentos, Robbie pensou que ela se tivesse descontrolado. Cecilia tinha os braços à volta da cabeça dele e, quando os cerrou mais, ele foi obrigado e levantar a cara para poder respirar. Depois abraçou-a, puxando-lhe a cabeça contra o seu peito. Ela tor­nou a morder-lhe e puxou-lhe a camisa. Quando ouviram um botão a cair no chão, tiveram de suprimir o sorriso rasgado que ostentavam e desviar a cara. A comédia tê-los-ia destruído. Cecilia prendeu o mamilo dele entre os dentes, provocando uma sensação insuportável. Robbie levantou-lhe a cara e, prendendo-a contra si, beijou-lhe os olhos e entreabriu-lhe os lábios com a língua. Cecilia abandonou-se, fazendo outra vez o mesmo som, como se fosse um suspiro de desi­lusão.

Eram finalmente desconhecidos; tinham esquecido os seus pas­sados. Também eram desconhecidos para si próprios, esquecendo quem eram ou onde estavam. A porta da biblioteca era espessa, pelo que nenhum dos sons habituais que pudesse tê-los alertado ou impe­dido de continuarem poderia chegar até eles. Estavam para lá do presente, fora do tempo, sem recordações nem futuro. Não havia nada a não ser uma sensação obliterante, excitante e gratificante, e o som do tecido a roçar no tecido, e da pele a roçar no tecido, enquanto os seus membros deslizavam uns contra os outros, num combate inquieto e sensual. Robbie era pouco experiente e só por relatos de terceiros é que sabia que não precisavam de se deitar. Quanto a ela, Para além de todos os filmes que tinha visto, e de todos os romances e poemas líricos que tinha lido, não tinha qualquer experiência. Apesar destas limitações, não os surpreendeu a clareza com que conheciam as suas necessidades. Estavam outra vez a beijar-se. Cecília tinha os braços por detrás da cabeça dele e estava a lamber-lhe a orelha e a mordiscar-lhe o lobo. Estas dentadas excitavam-no e, ao mesmo tempo, enraiveciam-no, acicatavam-no. Sentiu as nádegas dela por baixo do vestido e apertou-as com força, tentando voltar-se de lado para lhe dar uma palmada retaliatória, mas sem conseguir espaço suficiente. Com os olhos fixos nos dele, baixou-se para tirar os sapa­tos. Voltou a mexer-se desajeitadamente, para abrir botões e posicio­nar braços e pernas. Não tinha qualquer experiência. Sem falar, ele guiou o pé dela para a prateleira de baixo. Eram desajeitados, mas também naquele momento demasiado soltos para se sentirem enver­gonhados. Quando Robbie lhe levantou de novo o vestido justo de seda, sentiu que a incerteza que pairava no olhar dela reflectia a sua própria incerteza. Mas havia um único fim inevitável, e não podiam fazer nada a não ser avançar para ele.

Apoiada no canto das prateleiras pelo peso dele, Cecília voltou a pôr as mãos atrás do pescoço de Robbie, descansou os cotovelos no ombro dele e continuou a beijar-lhe o rosto. O momento propriamente dito foi fácil. Sustiveram a respiração antes de a membrana se ras­gar e, quando isso aconteceu, ela voltou-se rapidamente, mas sem deixar escapar nenhum som - parecia um motivo de orgulho. Apro­ximaram-se mais e depois, durante alguns segundos, tudo parou. Em vez de um momento de loucura extática, houve quietude. Fica­ram imobilizados não pelo facto espantoso de alguém ter chegado, mas por uma estranha sensação de regresso - estavam cara a cara, na penumbra, a olharem fixamente para o pouco que conseguiam ver do rosto um do outro, e agora era a sensação de impessoalidade que desaparecia. Claro que não havia nada de impessoal numa cara. O filho de Grace e Ernest Turner, a filha de Emily e Jack Tallis, amigos de infância, colegas da universidade, num estado de alegria expansiva e tranquila, foram confrontados com a profunda mudança que tinham sofrido. A proximidade de um rosto familiar não era ridícula; era inconcebível. Robbie olhou para a mulher, para a rapa­riga que sempre conhecera, pensando que a mudança estava nele pró­prio e era tão fundamental, tão fundamentalmente biológica, como o nascimento. Desde o dia em que nascera que nada de tão singular ou importante lhe tinha acontecido. Ela olhou-o da mesma forma intensa, dominada pela sensação da sua própria transformação e pela beleza de um rosto que um hábito de toda uma vida a ensinara a ignorar. Sussurrou o nome dele com a determinação de uma criança que tenta identificar sons distintos. Quando ele respondeu com o nome dela, pareceu-lhe ser uma palavra inteiramente nova - as sílabas eram as mesmas, mas o significado era diferente. Por fim, ele proferiu as duas palavras que nem um gesto de arte menor nem de falta de fé po­derão jamais depreciar. Ela repetiu-as, com a mesma ênfase no pro­nome, como se tivesse sido ela a dizê-las em primeiro lugar. Ele não era crente, mas era impossível não pensar na presença de uma teste­munha invisível naquela sala, perante a qual aquelas palavras esta­vam a ser ditas em voz alta como assinaturas num contrato invisível.

Ficaram imóveis durante talvez meio minuto. Mais tempo do que seria necessário para o domínio de uma arte tântrica formidável. Começaram a fazer amor encostados às prateleiras da biblioteca que rangiam com o movimento deles. É bastante comum nesses momen­tos a fantasia de que se está a chegar a um lugar distante e elevado. Robbie imaginou-se a passear pelo cume arredondado e suave de uma montanha, suspenso entre dois picos mais altos. Caminhava sem pressas, com um espírito observador, e com tempo suficiente para se aproximar de uma escarpa rochosa e olhar para a ladeira quase verti­cal que daí a pouco tempo teria de descer. Sentia-se tentado a atirar-se para o vazio, mas era um homem do mundo, pelo que podia ir-se em­bora e esperar. Não era fácil, porque estava a ser puxado para trás e tinha de resistir. Desde que não pensasse no precipício, não se apro­ximaria dele e não seria tentado. Obrigou-se a pensar nas coisas mais desinteressantes que conhecia - graxa para sapatos, um formulário, uma toalha molhada no chão do seu quarto. Havia também a tampa de um caixote do lixo voltada ao contrário, com alguns centímetros de água da chuva lá dentro, e a marca incompleta de uma chávena de chá na capa do seu livro de poemas de Housman. O inventário precioso foi interrompido pelo som da voz dela. Estava a interpelá-
-lo, a convidá-lo, a murmurar ao ouvido dele. Exactamente isso. Saltariam juntos. Estava com ela, a espreitar para um abismo, con­seguindo ver a ladeira a desaparecer por entre as nuvens. Atirar-se-
-iam de costas, de mãos dadas. Ela repetiu a mesma frase, segredan­do-lhe ao ouvido, mas desta vez ele conseguiu ouvi-la claramente: - Entrou alguém."

Expiação, Ian McEwan

1 Comentários:

Às 22 janeiro, 2005 21:38, Blogger Sérgio Xavier disse...

É bom saber que pelo menos uma pessoa achou interessante o post mais longo jamais feito neste blog.

Ainda bem que gostaste, Ana :-)

 

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