Coisas das Viagens - 3 noites em Sarajevo: noite segunda
Foi o pequeno almoço mais decente que tive oportunidade de tomar durante o mês que viajei; afinal aquela espelunca de madeira tinha televisão, WC privado, era limpa, um bom pequeno almoço, um bom restaurante e uma boa recepcionista :-)
Perguntei-lhe onde encontrava uma ATM, ao que ela respondeu: "tens que fartar de te andar naquele sentido e hás-de chegar a uma grande área comercial."
Fartei-me de andar pelos subúrbios da cidade; passei por um cemitério improvisado debaixo de um viaduto; passei pelas ruas destroçadas já há 8 anos...as habitações eram vermelhas - o tijolo vermelho foi a forma mais económica e rápida de reconstruir paredes.
Depois de ir a três ATM's VISA, encontrei uma com o meu tipo de VISA... Levantei dinheiro-a-dar-cum-pau!
Regressei ao hotel e paguei a minha conta.
Pela simplicidade da cidade, resolvi que bastava seguir num tram da grande linha (Snipper's Alley) para chegar ao centro da cidade. Foi o que fiz.
Fui andando, tentando reconhecer alguns edifícios que vinham referenciados no Lonely Planet; passou um bom bocado sem saber onde realmente estava (muitos dos edifícios encontravam-se ainda destruídos...) e abordei uma jovem que parecia viver em Sarajevo. Ficámos uns dez minutos a tentar entender-mo-nos; é que ela, para não fugir à regra, falava muito bem alemão mas muito mal inglês...
Foi então que uma senhora de óculos escuros, desviou o olhar do jornal que lia e disse-me num Inglês perfeito: "May I help you?"
Os violinos tocaram nesse momento e eu nunca mais a larguei...
Esta encantadora senhora explicou-me tudo o que eu queria saber e, simpaticamente, saiu na paragem onde eu era suposto saír para ir para o centro. Depois de ela me apontar todos os sítios interessantes para visitar naquela zona eu perguntei-lhe se, em vez de me explicar, ela não quereria vir almoçar comigo e mostrar-me o centro depois disso. Ela disse que sim (coisa que eu não estava à espera...) mas que tinha primeiro ir recolher umas assinaturas "ali para cima". "If you want, you can join me because it will take only ten minutes." E eu fui.
Ao subirmos a rua, e enquanto eu lhe dizia quem-era-e-o-que-fazia, ela interpelou um tipo todo aprumado e com um crachá da ONU. Pareceu zangada...e ele pareceu pedir-lhe desculpa: "Nós-depois-tratamos-do-seu-assunto."
Continuámos a subir até perto da sede desta organização; ela sentou-se numa esplanada ali perto e pediu-me que fizesse o mesmo. Apareceu imediatamente um outro tipo, ao qual ela deu uns papéis para que assinasse.
No caminho de volta, eu perguntei-lhe (com a facilmente imaginável curiosidade) "Quem és tu?"
Ela começou por dizer que eu a apanhei no seu melhor dia desde os últimos três anos...
"Hoje foi o dia em que consegui mediatizar uma coisa muito importante para mim; é que, desde há três anos para cá, tenho vindo a apurar coisas muito estranhas nos movimentos dos fundos dispensados pela ONU para a saúde infantil em Sarajevo. Eu encontrava-me ligada à assistência social infantil até começar a desconfiar deste facto. A minha superior, concordou com as minhas observações e, pelo perigo que corria, recomendou-me que saísse do país; fui para a Holanda onde passei a viver até há três meses atrás. Na altura do sucedido, perdi o meu emprego; eu era Presidente da Associação contra a Violência Doméstica em Sarajevo e a associação foi desmantelada 'por conflitos legais e falta de fundos'.
Acontece que eu não desisti das minhas investigações; e encontrei tudo o que queria encontrar - todas as provas começaram a apontar para a pessoa que me tinha recomendado saír da Bósnia...ela desviava dinheiro para a sua conta, negligenciando muitas dos dispendiosos tratamentos infantis do pós-guerra; dezenas de crianças morreram por falta do dinheiro que ela desviou...
Estou de volta desde há três meses para cá; para organizar as provas e pô-las num jornal." - abriu o jornal que estava a ler no tram - "esta, como vês, sou eu; e esta é a ex-directora do organismo para a saúde infantil, da ONU; ex-directora porque, entretanto desapareceu...ninguém sabe dela...mas, de qualquer forma, é uma vitória para mim...só quero que iste inferno acabe..."
Depois de ouvir tudo isto, não consegui dizer nada...excepto isto: "So, it's time to lunch, no?"
As histórias continuaram pelo almoço, a senhora tinha 44 anos. Ficou mais-ou-menos combinado que jantaríamos juntos para comemorar a boa-nova."God, I don´t have a date since more than 10 years a go!", comentou.
Fomos a uma gelataria para a sobremesa e, pouco depois de entrarmos ela pediu-me uma caneta e começou a escrever num pedaço de papel que me mostrou: "Não olhes agora, mas percebi que o meu Ex está a trabalhar aqui e, para além de estar cheio de ciúmes, sei que trabalha também para a Interpol...não falemos destas coisas da ONU agora, por favor."
...........nesta altura senti-me mesmo num livro da tia Agatha...pensei: "Epá, tou aqui bem?!? Eu só sou um tipo simples a fazer o meuzinho Inter-rail..."
Depois de darmos uma volta pelo mercado turco eu disse-lhe que queria perder-me pela cidade, como houvera feito sempre em cada cidade que estive durante a viagem. "Ok, I'll go now and if you phone me, just don't mention the place where we go to meet, otherwise, they'll be there...let's just meet in the Hollyday Inn, we arrange the hour later." - confesso que senti algum alívio ao ver que se afastava. O meu primeiro pensamento foi: Tudo isto não pode ser verdade.
Assim, claro que o que seguidamente fiz foi procurar uma esplanada, comprar uma caneca de pivo e sentar-me com duas jovens que tinham-todo-o-ar-de-ser-estudantes-e-de-falar-bem-Inglês. Acertei.
Disse-lhes "Olá" e imediatamente passei-lhes o exemplar do jornal que tinha comprado para mim.
Elas ficaram chocadas com a notícia e contaram-me tudo o que já me houvera sido contado pela Jagoda. Tudo era verdade.
Paguei-lhes as bebidas e fui apanhar ar.
#
Depois de comprar uma garrafa de Champanhe, telefonei-lhe de um telemóvel de um tipo simpático (as cabines telefónicas em Sarajevo são bichos difíceis...) para combinarmos uma hora para jantar.
Como me encontrava mais perto do hotel do que do Hollyday Inn, pedi-lhe que viesse ter comigo "ao sítio onde eu estava hospedado".
Depois das senhoras simpáticas do restaurante terem posto o Champanhe no frigorífico, fui para a recepção esperar pela lady; por entre a conversa intangível que tive com a rapariga-bonita-da-recepção-sempre-janada, há algo que me recordo; ela parecia descontente com o trabalho que fazia "But what else could we do in this sad no-mans-land here?".
Jantámos numa varanda exterior do restaurante; estava tempo para isso, ao fundo viam-se homens a carregar caixas de bananas.
Muito conversámos, naquela que foi uma das mais interessantes conversas que jamais tive com um quase-estranho.
Quando lhe perguntei se queria Champanhe, ela disse que não bebia álcool...mas que tinha algo de que gostaria de me falar.
Por entre todas as "profissões" activistas que ela tinha (a Jagoda é Socióloga), percebi que, uma delas era assistência a crianças sem-abrigo. Ora, havia um projecto de um abrigo para estas crianças que, segundo ela, mais-dia-menos-dia iria para a frente; "I would love that you collaborate in the project by giving us the main idea..." Fiquei contente, mas (muito) céptico. Combinámos ir ao local do projecto na manhã do dia seguinte.
Enquanto a acompanhava até à paragem do tram, ela comentou: "I bet that all the people that have seen us have thaught the same thing..." - "Yes, but I enjoy to play these games." - disse-lhe, ao passar-lhe a garrafa de Champanhe para as mãos.
Ainda hoje pergunto-me qual seria, na realidade, o jogo que estaríamos a jogar...os dois.
Fui para a cama sozinho; liguei a televisão, onde estava a passar uma recontituição da morte de Diana. Não me lembro, mas uma certeza qualquer diz-me que adormeci de cansaço, com um sorriso.
Perguntei-lhe onde encontrava uma ATM, ao que ela respondeu: "tens que fartar de te andar naquele sentido e hás-de chegar a uma grande área comercial."
Fartei-me de andar pelos subúrbios da cidade; passei por um cemitério improvisado debaixo de um viaduto; passei pelas ruas destroçadas já há 8 anos...as habitações eram vermelhas - o tijolo vermelho foi a forma mais económica e rápida de reconstruir paredes.
Depois de ir a três ATM's VISA, encontrei uma com o meu tipo de VISA... Levantei dinheiro-a-dar-cum-pau!
Regressei ao hotel e paguei a minha conta.
Pela simplicidade da cidade, resolvi que bastava seguir num tram da grande linha (Snipper's Alley) para chegar ao centro da cidade. Foi o que fiz.
Fui andando, tentando reconhecer alguns edifícios que vinham referenciados no Lonely Planet; passou um bom bocado sem saber onde realmente estava (muitos dos edifícios encontravam-se ainda destruídos...) e abordei uma jovem que parecia viver em Sarajevo. Ficámos uns dez minutos a tentar entender-mo-nos; é que ela, para não fugir à regra, falava muito bem alemão mas muito mal inglês...
Foi então que uma senhora de óculos escuros, desviou o olhar do jornal que lia e disse-me num Inglês perfeito: "May I help you?"
Os violinos tocaram nesse momento e eu nunca mais a larguei...
Esta encantadora senhora explicou-me tudo o que eu queria saber e, simpaticamente, saiu na paragem onde eu era suposto saír para ir para o centro. Depois de ela me apontar todos os sítios interessantes para visitar naquela zona eu perguntei-lhe se, em vez de me explicar, ela não quereria vir almoçar comigo e mostrar-me o centro depois disso. Ela disse que sim (coisa que eu não estava à espera...) mas que tinha primeiro ir recolher umas assinaturas "ali para cima". "If you want, you can join me because it will take only ten minutes." E eu fui.
Ao subirmos a rua, e enquanto eu lhe dizia quem-era-e-o-que-fazia, ela interpelou um tipo todo aprumado e com um crachá da ONU. Pareceu zangada...e ele pareceu pedir-lhe desculpa: "Nós-depois-tratamos-do-seu-assunto."
Continuámos a subir até perto da sede desta organização; ela sentou-se numa esplanada ali perto e pediu-me que fizesse o mesmo. Apareceu imediatamente um outro tipo, ao qual ela deu uns papéis para que assinasse.
No caminho de volta, eu perguntei-lhe (com a facilmente imaginável curiosidade) "Quem és tu?"
Ela começou por dizer que eu a apanhei no seu melhor dia desde os últimos três anos...
"Hoje foi o dia em que consegui mediatizar uma coisa muito importante para mim; é que, desde há três anos para cá, tenho vindo a apurar coisas muito estranhas nos movimentos dos fundos dispensados pela ONU para a saúde infantil em Sarajevo. Eu encontrava-me ligada à assistência social infantil até começar a desconfiar deste facto. A minha superior, concordou com as minhas observações e, pelo perigo que corria, recomendou-me que saísse do país; fui para a Holanda onde passei a viver até há três meses atrás. Na altura do sucedido, perdi o meu emprego; eu era Presidente da Associação contra a Violência Doméstica em Sarajevo e a associação foi desmantelada 'por conflitos legais e falta de fundos'.
Acontece que eu não desisti das minhas investigações; e encontrei tudo o que queria encontrar - todas as provas começaram a apontar para a pessoa que me tinha recomendado saír da Bósnia...ela desviava dinheiro para a sua conta, negligenciando muitas dos dispendiosos tratamentos infantis do pós-guerra; dezenas de crianças morreram por falta do dinheiro que ela desviou...
Estou de volta desde há três meses para cá; para organizar as provas e pô-las num jornal." - abriu o jornal que estava a ler no tram - "esta, como vês, sou eu; e esta é a ex-directora do organismo para a saúde infantil, da ONU; ex-directora porque, entretanto desapareceu...ninguém sabe dela...mas, de qualquer forma, é uma vitória para mim...só quero que iste inferno acabe..."
Depois de ouvir tudo isto, não consegui dizer nada...excepto isto: "So, it's time to lunch, no?"
As histórias continuaram pelo almoço, a senhora tinha 44 anos. Ficou mais-ou-menos combinado que jantaríamos juntos para comemorar a boa-nova."God, I don´t have a date since more than 10 years a go!", comentou.
Fomos a uma gelataria para a sobremesa e, pouco depois de entrarmos ela pediu-me uma caneta e começou a escrever num pedaço de papel que me mostrou: "Não olhes agora, mas percebi que o meu Ex está a trabalhar aqui e, para além de estar cheio de ciúmes, sei que trabalha também para a Interpol...não falemos destas coisas da ONU agora, por favor."
...........nesta altura senti-me mesmo num livro da tia Agatha...pensei: "Epá, tou aqui bem?!? Eu só sou um tipo simples a fazer o meuzinho Inter-rail..."
Depois de darmos uma volta pelo mercado turco eu disse-lhe que queria perder-me pela cidade, como houvera feito sempre em cada cidade que estive durante a viagem. "Ok, I'll go now and if you phone me, just don't mention the place where we go to meet, otherwise, they'll be there...let's just meet in the Hollyday Inn, we arrange the hour later." - confesso que senti algum alívio ao ver que se afastava. O meu primeiro pensamento foi: Tudo isto não pode ser verdade.
Assim, claro que o que seguidamente fiz foi procurar uma esplanada, comprar uma caneca de pivo e sentar-me com duas jovens que tinham-todo-o-ar-de-ser-estudantes-e-de-falar-bem-Inglês. Acertei.
Disse-lhes "Olá" e imediatamente passei-lhes o exemplar do jornal que tinha comprado para mim.
Elas ficaram chocadas com a notícia e contaram-me tudo o que já me houvera sido contado pela Jagoda. Tudo era verdade.
Paguei-lhes as bebidas e fui apanhar ar.
#
Depois de comprar uma garrafa de Champanhe, telefonei-lhe de um telemóvel de um tipo simpático (as cabines telefónicas em Sarajevo são bichos difíceis...) para combinarmos uma hora para jantar.
Como me encontrava mais perto do hotel do que do Hollyday Inn, pedi-lhe que viesse ter comigo "ao sítio onde eu estava hospedado".
Depois das senhoras simpáticas do restaurante terem posto o Champanhe no frigorífico, fui para a recepção esperar pela lady; por entre a conversa intangível que tive com a rapariga-bonita-da-recepção-sempre-janada, há algo que me recordo; ela parecia descontente com o trabalho que fazia "But what else could we do in this sad no-mans-land here?".
Jantámos numa varanda exterior do restaurante; estava tempo para isso, ao fundo viam-se homens a carregar caixas de bananas.
Muito conversámos, naquela que foi uma das mais interessantes conversas que jamais tive com um quase-estranho.
Quando lhe perguntei se queria Champanhe, ela disse que não bebia álcool...mas que tinha algo de que gostaria de me falar.
Por entre todas as "profissões" activistas que ela tinha (a Jagoda é Socióloga), percebi que, uma delas era assistência a crianças sem-abrigo. Ora, havia um projecto de um abrigo para estas crianças que, segundo ela, mais-dia-menos-dia iria para a frente; "I would love that you collaborate in the project by giving us the main idea..." Fiquei contente, mas (muito) céptico. Combinámos ir ao local do projecto na manhã do dia seguinte.
Enquanto a acompanhava até à paragem do tram, ela comentou: "I bet that all the people that have seen us have thaught the same thing..." - "Yes, but I enjoy to play these games." - disse-lhe, ao passar-lhe a garrafa de Champanhe para as mãos.
Ainda hoje pergunto-me qual seria, na realidade, o jogo que estaríamos a jogar...os dois.
Fui para a cama sozinho; liguei a televisão, onde estava a passar uma recontituição da morte de Diana. Não me lembro, mas uma certeza qualquer diz-me que adormeci de cansaço, com um sorriso.
1 Comentários:
Migalha: foi uma das aventuras da minha vida...Aconteceu MESMO!
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