sábado, novembro 27, 2004

Coisas do Amor - "Red Thin Line"

Já cá faltava...o amor acaba sempre por vir à conversa...

No último dia em Krakow, enquanto esperava pelo comboio, fui para um bar chique gastar os últimos trocos que tinha. Passou uma música que eu conhecia, já há muito tempo, não consegui lembrar-me do nome de quem a cantava: Ne me quitte pas...

Veio-me a nostalgia e dei comigo a chorar sozinho enquanto comia uma tosta mista; aconteceu esse acidente, porque chorar é sempre um acidente.

Não consigo dizer como aconteceu; por nenhum momento em concreto; por ninguém em concreto; por nenhum local em concreto. Aconteceu porque, no geral, em mim, como em toda a gente, existem passados e desejos de futuro; o futuro é sempre triste, porque é escuro, não se vê; e o passado, esse, volta-nos de quando em vez; devora-nos; Porque, em verdade, há sempre qualquer coisa que não esquecemos em cada uma das paixões que temos. A nostalgia é devoradora e, como dizer...docemente triste.

Neruda escreveu que não conseguia escolher uma mulher; porque a mulher escolhida, para um homem, corresponde ao conjunto de todas as diferentes características das diferentes mulheres que amámos. Eu, tristemente, sublinho Neruda; tristemente porque suponho, assim, que "aquela mulher" não existe.

Posso apontar inúmeros momentos em que senti amor; quero dizer, preenchido com amor, e isso é o amor. Aconteceu com x, y ou z; neste ou naquele momento; desta ou doutra forma. Hoje sei que o quero, muito...

Estar num café em Krakow e, por acidente, começar a chorar ao som da Ne me quitte pas é perceber que poderia ter sido com todas e, ao mesmo tempo, com nenhuma...é perceber que deixamos uma paixão para trás das costas que poderia ter sido o grande amor; é perceber que, pelas curvas da vida, umas vezes fomos terrivelmente infantis, outras, terrivelmente inocentes e outras ainda, terrivelmente intolerantes; é perceber que tudo se perde quando se perde a comunicação; é perceber também que, quanto a tudo isto, não há nada a fazer; foi assim.

O amor foi inventado. É por isso que é tão bom, e tão difícil. O amor é inventado e re-inventado todos os dias; mesmo quando pensamos descobri-lo por mero acaso. De cada vez, queremos sempre mais...ou então não.

"O amor comanda a vida", é verdade. É por isso que somos tão frágeis, mesmo quando estamos entretidos com "outras felicidades".

Disse-lhe ontem que me sentia confortavelmente "pobre"; com "pouco" para dar e contente com o "pouco" que recebia; mas, às vezes, as pessoas querem mais - seja isso possível ou não; seja isso um breve interstício naquilo que nos deveria preencher, seja isso um inevitável contrato platónico com a nossa dócil imaginação...

São coisas feias as expectativas; esterilizam o nosso presente e ferem o nosso futuro; ao contrário do que se possa pensar, as expectativas não se focam no futuro, são antes os sublimes e insublimes do nosso mais íntimo passado.

As expectativas são "os brilhantes aliados dos nossos próprios coveiros", pensar num possível momento é já impossibilitá-lo menos.

Estar num café em Krakow e, por acidente, começar a chorar ao som da Ne me quitte pas é perceber que esta coisa do amor que todos queremos, é muito mais um equilíbrio do saber viver no presente do que a correspondência às inevitáveis expectativas que fazemos; é perceber que a paixão só dura os momentos em que não pensamos sobre ela; é perceber que o amor vive enquanto soubermos amar...é realizar que em toda a viagem que nos aconteceu, a todos, não aconteceu haver alguém que tivesse realizado que o amor é esta fina linha em que tudo cabe e que por tudo pode ser perturbável.

É perceber como podemos ser tão terrivelmente imaturos em não constatar que ele só precisa de ser deixado em paz.

"Esvaziem a cabeça de tudo o que 'sabem' do amor; assumam a condição humana de que não sabemos nada e, por isso, sabemos tudo; percebam que não existe o 'dar', que não existe o 'receber', que não existe 'medo', que não existe 'vergonha', que não existe 'intimidade'. O amor é muito mais que isto, é muito mais do que a soma de todas estas e outras coisas." é nisto que pensa uma pessoa que chora num café de Krakow ao som da Ne me quitte pas.

Talvez porque estou triste; talvez porque não muito mais triste do que ficaria de outra forma qualquer, pus a Nina Simone em "repeat"; mas estou longe de sentir o mesmo, porque chorar é sempre um acidente.

Mas estou arrepiado.

"Immerse your soul in Love.", é que não é a Nina que a canta, não entendem? É antes o amor.

É que não é 'paz e amor', é antes 'paz ao amor'.

Beijos.








Post Scriptum: e, com certeza melhor do que na minha poesia, vejam o que pode acontecer na fina linha; está no Before Sunset.

Before Sunset: tão bom como verdadeiro.

terça-feira, novembro 23, 2004

Coisas da Arquitectura - Quinta do Bom Sucesso no CCB

Era uma vez um promotor endinheirado; esse promotor conseguiu obter todo o cadastro de uma grande área perto da Lagoa de Óbidos; pediu a um grande gabinete para que fizessem um plano de pormenor para a área, com habitação, golf, spa, hotel, etc...

Este promotor resolveu gastar uma pipa de massa com os autores dos diferentes projectos subsequentes. Entre os Hot Shots está o Siza, o Souto Moura, o Byrne, o Soutinho, o Carrilho e por aí fora...

Para além dos velhotes, existem projectos, também, da geração mais jovem de arquitectos: Inês Lobo, Madalena Cardozo de Menezes (MCM), Francisco Teixeira Bastos (FTB),etc...

Este promotor decidiu que seria uma boa maneira de mediatizar a iniciativa através de uma exposição no CCB.

Assim, de 29 de Novembro a 5 de Dezembro, pode ver-se uma das facetas da arquitectura portuguesa actual e de referência, na área da habitação. A inauguração é às 19:00.



Por agora, aliciem-se (espero eu...) com imagens de alguns dos projectos a cargo de MCM e FTB.





Informações mais detalhadas dos projectos é aqui.

Coisas dos Jogos de Computador - Os jogos e o espaço (lembram-se?)

Já por diversas vezes dei comigo a pensar, havia de ser porreiro um dia olhar para a forma como os jogos de computador da minha infância influenciaram a percepção e o imaginário que tenho do espaço, hoje.

Não vou fazer isso hoje da forma como deveria ser feito...(merecia muito mais tempo de dedicação) mas vou tentar ir mais um pouco longe na matéria.

Quem não se lembra do Spectrum? Uns tinham o 48k, outros o 128k, mas todos tinhamos uma pequena chave de fendas à mão para afinar o gravador, lembram-se? E do Load, aspas, aspas (LOAD"")?

Lembram-se do Target Renegade? do Rick Dangerous? do SWIV? do Commandos? do Arkanoid? do Cibernoid? dos Barbarian? do Manic Miner? do Chuckie Egg? do Dizzy? do Rolling Thunder... que saudades...até o Paradise Café me deixa nostálgico...parte do dinheiro que tinha para os gelados do fim-de-semana era gasto no Correio de Domingo porque era lá que se encontravam os "Pokes & Dicas".

As novidades apareciam na secção de "jogos" à 3ª feira, se bem me lembro, no programa "Ponto por Ponto". Era um mundo...

E no Commodore Amiga; o Civilization, o Colonization, o Premier Manager, o Sensible Soccer, o Crazy Cars, do Pirates!, do Dune...enfim, interminável a lista. Tantas horas que passei agarrado a eles (aos jogos); felicidade pura, coisa mais complicada agora.

É com o Amiga 500 que, para mim, surge a palavra disquete no meu campo léxico; lembram-se? havia um jogo qualquer que tinha nove disquetes...qual era?

Mas comecemos por exemplo pelo Prince of Persia; um jogo labiríntico onde em cada cenário cabiam três pés-direitos :-) tinhamos que encontrar a saída e iamos passando de nível...

Prince of Persia: a primeira Aventura em plataformas.

Mas o jogo que mais me inspirou o imaginário foi o Another World, creio. Sempre tive um fascínio pelos jogos clássicos de aventura (The Secret of the Monkey Island, Cruise for a Corpse, etc..) ou , às vezes chamados, "jogos de objectos" (lembram-se?). Mas o Another World foi, para mim pelo menos, o primeiro jogo de aventura equilibrada com acção. Todos os fabulosos cenários tinham objectivos e soluções diferentes; nadava-se, corria-se, saltava-se, dava-se balanço a um cárcere, disparava-se, activavam-se escudos de energia, adivinhavam-se códigos de activação, etc, etc, etc...

Os cenários, apresentações e jogabilidade deste jogo revolucionaram tudo o que havia sido feito até ali; tornaram os jogadores mais exigentes, também.

Another World: o começo, já fora do tanque dos tentáculos.
A primeira grande cidade que nos é permitido ver (lembram-se da animação 'Tygra, o fogo e o gelo'?
Já dentro da cidade...
Será que o Koolhas não jogou Another World quando era mais novinho?

Mais tarde, outro jogo da mesma companhia (de que não me lembro o nome) veio actualizar novamente esta matéria: Flashback, outra grande obra prima do Amiga. As fracas imagens que consegui arranjar ilustram já a sugestividade dos espaços encenados nos jogos em causa; e é disto que falo. É possível estes jogos não terem influenciado a forma como hoje eu vejo o espaço? Creio que não.

E porque é tarde e amanhã é de acordar cedo, deixo o resto para os comentários que têm andado ou tímidos, ou preguiçosos.

Flashback: a apresentação inicial.
O primeiro cenário; lembram-se dos sons da selva?
O segundo Mundo.
Um dos níveis finais, em que estamos perto da morte num directo para a TV; quem criou o Big Brother?
Outro jogo com grande criatividade espacial: Dragon's Lair.
Os pans das câmaras são admiráveis.

Para quem quiser alongar a nostalgia proposta, é aqui.

Hasta la Pasta.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Coisas das Viagens - 3 noites em Sarajevo: noite terceira e mais um pouco...

Na manhã seguinte, arrumei a mala e tomei um longo duche antes de me dirigir ao restaurante do hotel comer; foi o último delicioso somun que comi na Bósnia.

Foi pela varanda que vi Jagoda chegar.

Depois de fazer o check-out (com vista a ir nesse mesmo dia para Veneza), fomos ao local do abrigo, como combinado. Era perto de uma igreja, onde ela beijou uma fotografia de um santo; e era perto da escola onde o seu filho ingressaria no próximo ano lectivo. Ela foi lá dentro e eu esperei sentado num banco exterior; surgiram uns repórteres que, pelo que me pareceu, faziam entrevistas sobre o começo do ano lectivo; disse-lhes: "I'm surely not who you are looking for..."

Quanto ao terreno, nada de especial; baldio, com ervas e árvores. Naquela zona de Sarajevo também se viam comummente cavalos.

Ora aí está o melhor da culinária bósnia: o pão.

Quantas vezes é que já me ofereceram projectos e, depois, nada? É fácil brincar com os sentimentos do arquitecto ingénuo...

Descemos e eu decidi apanhar um táxi até à estação ferroviária. Ela saiu antes e foi aí que nos despedimos; ficou de entrar em contacto comigo em tempo breve, mas até hoje, nada.

#

Dirigi-me para as bilheteiras da estação e, depois de 5 minutos sem nos entendermos, a mulher do guichê pediu-me para aguardar.

Aguardei por volta de 20 minutos, sentado em cima da pesada mochila, o stress começou a fazer efeito...

Tentei falar com outra mulher mas sem sucesso; entretanto, uma outra cliente, ao perceber a situação, tentou ajudar-me. Era americana-sérvia :-)

Percebi nesse momento que só teria comboio no dia seguinte, de manhã...

Depois de saber a má notícia, convidei-a para beber um copo comigo por ali perto.

Fomos então para um snack, onde eu aproveitei para almoçar. Tivemos uma conversa interessante, daquelas de estranho-para-estranho; contei-lhe o que se me tinha sucedido nos últimos dias.

Tirei o maço de notas que tinha na bolsa (na Hungria ainda foi pior...para pagar um pacote de leite eram necessárias umas 5 notas...) e reparei que, apesar de ter muito papel, tinha muito pouco dinheiro. Olhei para ela; ela simplesmente sorriu, pagou a nossa conta e disse: "Good luck, I wish you a good trip!"

Apanhei o tram pra o centro, com o intuito de levantar mais dinheiro e procurar um sítio para deixar a mochila e passar a noite.

Ao fazer as contas ao dinheiro que tinha, encontrei um papel com uns contactos em Sarajevo que o Zé me tinha dado no caso de precisar.

O cartão telefónico que tinha comprado para telefonar à Jagoda deu jeito. Falei com a Lejla: "You don't know me but I have a long story to tell you...", para ela ficar a saber onde eu estava, chamei um tipo que estava a passar e pedi-lhe que a informasse pelo telefone.

Por coincidência, a Lejla estava a dois minutos dali: "Hello! It's all arranged now, you will sleet at my sister's place." (Se tudo fosse sempre tão fácil assim...)

Por coincidência, a sua irmã, Nejra, estava a cinco minutos dali.

Pegaram em mim e nas minhas coisas e levaram-me para uma casa nas montanhas que encerram Sarajevo.

A Nejra é estudante de Arquitectura; os seus pais são arquitectos; a casa deles é fascinante.

Por fora, viam-se ainda as marcas da guerra; inúmeras marcas de balas pontuavam as paredes das habitações naquela rua, aliás, como em muito outras em Sarajevo...

A Nejra tinha o seu T0 dentro daquela casa...

Fui tomar um banho numa daquelas banheiras enormes, com o gel exfoliante que ela, carinhosamente, me sugeriu. Foi o melhor banho do meu Inter-rail.

Saímos para passear. Comemos isto-e-aquilo, bebemos muito iogurte natural (que os bósnios bebem tanto que existem lojas dedicadas a vender só iogurte, de fabrico próprio).

Fomos àquela que é a avenida mais populada de Sarajevo; havia pessoas a fazer jogging, putos a brincar com os cães e velhotes a dar o passeio do fim de tarde. Ficou noite e perguntei-lhe porque é que a iluminação exterior não estava ligada.
"Since the war, it doesn't work."

Esta cidade assombrou-me; normalmente, somos nós que observamos a cidade, Sarajevo, passados oito anos, observa-nos a nós; como se fosse um fantasma.

Levou-me a um tal de Buddha Bar no centro; situava-se num interior de quarteirão, sem qualquer letreiro à porta; ouvia-se som vindo do final do corredor.

O bar fazia lembrar os bistro de Krakow; por debaixo da cidade, envoltos em ruínas subterrâneas.

Na subida, parámos num miradouro; Sarajevo é a cidade dos minaretes; seja de que religião for (entre as 1001 existentes...), as torres dos locais de culto preenchem o skyline (valleyline) da cidade.

Antes de irmos dormir, mostrou-me uma bala cravada no soalho da sua casa: "Durante a guerra, nós barricamos todas as janelas com sacos de areia; mas um dos snipers que estavam nas montanhas conseguiu meter esta bala cá dentro."

Dormi como um anjinho.

#

No comboio para Zagreb (que fazia escala com o de Veneza) conheci uma interessante repórter eslovena. Jantámos juntos em Zagreb numa conversa animada que continuou durante a viagem.

Ao chegarmos a Ljubljana, enquanto a Neva preparava a sua bagagem para saír perguntou-me: "You're still going to Venice?"

...




domingo, novembro 21, 2004

Coisas das Viagens - 3 noites em Sarajevo: noite segunda

Foi o pequeno almoço mais decente que tive oportunidade de tomar durante o mês que viajei; afinal aquela espelunca de madeira tinha televisão, WC privado, era limpa, um bom pequeno almoço, um bom restaurante e uma boa recepcionista :-)

Perguntei-lhe onde encontrava uma ATM, ao que ela respondeu: "tens que fartar de te andar naquele sentido e hás-de chegar a uma grande área comercial."

Fartei-me de andar pelos subúrbios da cidade; passei por um cemitério improvisado debaixo de um viaduto; passei pelas ruas destroçadas já há 8 anos...as habitações eram vermelhas - o tijolo vermelho foi a forma mais económica e rápida de reconstruir paredes.

O cemitério improvisado debaixo do viaduto...


Depois de ir a três ATM's VISA, encontrei uma com o meu tipo de VISA... Levantei dinheiro-a-dar-cum-pau!

Regressei ao hotel e paguei a minha conta.

Pela simplicidade da cidade, resolvi que bastava seguir num tram da grande linha (Snipper's Alley) para chegar ao centro da cidade. Foi o que fiz.

Fui andando, tentando reconhecer alguns edifícios que vinham referenciados no Lonely Planet; passou um bom bocado sem saber onde realmente estava (muitos dos edifícios encontravam-se ainda destruídos...) e abordei uma jovem que parecia viver em Sarajevo. Ficámos uns dez minutos a tentar entender-mo-nos; é que ela, para não fugir à regra, falava muito bem alemão mas muito mal inglês...


Sarajevo desenvolve-se em redor de uma linha a Sul; apanhei o tram perto do aeroporto (a Oeste) para o centro (a Este).


Foi então que uma senhora de óculos escuros, desviou o olhar do jornal que lia e disse-me num Inglês perfeito: "May I help you?"

Os violinos tocaram nesse momento e eu nunca mais a larguei...

Esta encantadora senhora explicou-me tudo o que eu queria saber e, simpaticamente, saiu na paragem onde eu era suposto saír para ir para o centro. Depois de ela me apontar todos os sítios interessantes para visitar naquela zona eu perguntei-lhe se, em vez de me explicar, ela não quereria vir almoçar comigo e mostrar-me o centro depois disso. Ela disse que sim (coisa que eu não estava à espera...) mas que tinha primeiro ir recolher umas assinaturas "ali para cima". "If you want, you can join me because it will take only ten minutes." E eu fui.

Ao subirmos a rua, e enquanto eu lhe dizia quem-era-e-o-que-fazia, ela interpelou um tipo todo aprumado e com um crachá da ONU. Pareceu zangada...e ele pareceu pedir-lhe desculpa: "Nós-depois-tratamos-do-seu-assunto."

Continuámos a subir até perto da sede desta organização; ela sentou-se numa esplanada ali perto e pediu-me que fizesse o mesmo. Apareceu imediatamente um outro tipo, ao qual ela deu uns papéis para que assinasse.

No caminho de volta, eu perguntei-lhe (com a facilmente imaginável curiosidade) "Quem és tu?"

Ela começou por dizer que eu a apanhei no seu melhor dia desde os últimos três anos...

"Hoje foi o dia em que consegui mediatizar uma coisa muito importante para mim; é que, desde há três anos para cá, tenho vindo a apurar coisas muito estranhas nos movimentos dos fundos dispensados pela ONU para a saúde infantil em Sarajevo. Eu encontrava-me ligada à assistência social infantil até começar a desconfiar deste facto. A minha superior, concordou com as minhas observações e, pelo perigo que corria, recomendou-me que saísse do país; fui para a Holanda onde passei a viver até há três meses atrás. Na altura do sucedido, perdi o meu emprego; eu era Presidente da Associação contra a Violência Doméstica em Sarajevo e a associação foi desmantelada 'por conflitos legais e falta de fundos'.

Acontece que eu não desisti das minhas investigações; e encontrei tudo o que queria encontrar - todas as provas começaram a apontar para a pessoa que me tinha recomendado saír da Bósnia...ela desviava dinheiro para a sua conta, negligenciando muitas dos dispendiosos tratamentos infantis do pós-guerra; dezenas de crianças morreram por falta do dinheiro que ela desviou...

Estou de volta desde há três meses para cá; para organizar as provas e pô-las num jornal." - abriu o jornal que estava a ler no tram - "esta, como vês, sou eu; e esta é a ex-directora do organismo para a saúde infantil, da ONU; ex-directora porque, entretanto desapareceu...ninguém sabe dela...mas, de qualquer forma, é uma vitória para mim...só quero que iste inferno acabe..."

Depois de ouvir tudo isto, não consegui dizer nada...excepto isto: "So, it's time to lunch, no?"

As histórias continuaram pelo almoço, a senhora tinha 44 anos. Ficou mais-ou-menos combinado que jantaríamos juntos para comemorar a boa-nova."God, I don´t have a date since more than 10 years a go!", comentou.

Fomos a uma gelataria para a sobremesa e, pouco depois de entrarmos ela pediu-me uma caneta e começou a escrever num pedaço de papel que me mostrou: "Não olhes agora, mas percebi que o meu Ex está a trabalhar aqui e, para além de estar cheio de ciúmes, sei que trabalha também para a Interpol...não falemos destas coisas da ONU agora, por favor."

...........nesta altura senti-me mesmo num livro da tia Agatha...pensei: "Epá, tou aqui bem?!? Eu só sou um tipo simples a fazer o meuzinho Inter-rail..."

Depois de darmos uma volta pelo mercado turco eu disse-lhe que queria perder-me pela cidade, como houvera feito sempre em cada cidade que estive durante a viagem. "Ok, I'll go now and if you phone me, just don't mention the place where we go to meet, otherwise, they'll be there...let's just meet in the Hollyday Inn, we arrange the hour later." - confesso que senti algum alívio ao ver que se afastava. O meu primeiro pensamento foi: Tudo isto não pode ser verdade.

Assim, claro que o que seguidamente fiz foi procurar uma esplanada, comprar uma caneca de pivo e sentar-me com duas jovens que tinham-todo-o-ar-de-ser-estudantes-e-de-falar-bem-Inglês. Acertei.

Disse-lhes "Olá" e imediatamente passei-lhes o exemplar do jornal que tinha comprado para mim.


Jogoda à esquerda; Administradora ONU para a saúde infantil em Sarajevo à direita.

Elas ficaram chocadas com a notícia e contaram-me tudo o que já me houvera sido contado pela Jagoda. Tudo era verdade.

Paguei-lhes as bebidas e fui apanhar ar.

#

Depois de comprar uma garrafa de Champanhe, telefonei-lhe de um telemóvel de um tipo simpático (as cabines telefónicas em Sarajevo são bichos difíceis...) para combinarmos uma hora para jantar.

Como me encontrava mais perto do hotel do que do Hollyday Inn, pedi-lhe que viesse ter comigo "ao sítio onde eu estava hospedado".

Depois das senhoras simpáticas do restaurante terem posto o Champanhe no frigorífico, fui para a recepção esperar pela lady; por entre a conversa intangível que tive com a rapariga-bonita-da-recepção-sempre-janada, há algo que me recordo; ela parecia descontente com o trabalho que fazia "But what else could we do in this sad no-mans-land here?".

Jantámos numa varanda exterior do restaurante; estava tempo para isso, ao fundo viam-se homens a carregar caixas de bananas.

Muito conversámos, naquela que foi uma das mais interessantes conversas que jamais tive com um quase-estranho.

Quando lhe perguntei se queria Champanhe, ela disse que não bebia álcool...mas que tinha algo de que gostaria de me falar.

Por entre todas as "profissões" activistas que ela tinha (a Jagoda é Socióloga), percebi que, uma delas era assistência a crianças sem-abrigo. Ora, havia um projecto de um abrigo para estas crianças que, segundo ela, mais-dia-menos-dia iria para a frente; "I would love that you collaborate in the project by giving us the main idea..." Fiquei contente, mas (muito) céptico. Combinámos ir ao local do projecto na manhã do dia seguinte.

Enquanto a acompanhava até à paragem do tram, ela comentou: "I bet that all the people that have seen us have thaught the same thing..." - "Yes, but I enjoy to play these games." - disse-lhe, ao passar-lhe a garrafa de Champanhe para as mãos.

Ainda hoje pergunto-me qual seria, na realidade, o jogo que estaríamos a jogar...os dois.

Fui para a cama sozinho; liguei a televisão, onde estava a passar uma recontituição da morte de Diana. Não me lembro, mas uma certeza qualquer diz-me que adormeci de cansaço, com um sorriso.


sábado, novembro 20, 2004

Coisas das Viagens - 3 noites em Sarajevo: noite primeira

Das viagens fermentam histórias; as nossas e a dos outros. Esta que se segue passou-se comigo.

...por volta das 14:00 cheguei a Ploce, que é o único lugar do sul da Croácia onde se pode apanhar um combóio para a Bósnia. A Paula, uma simpática croata que eu houvera conhecido no autocarro de Dubrovnik, indicou-me o caminho para a estação, decifrou os horários expostos e fez-me a reserva da viagem.

Apanhei o comboio para Mostar. Estava sozinho na cabine até aparecer o revisor, a quem mostrei o bilhete global de inter-rail, aliás como sempre houvera feito até ali. O revisor, impávido, olhou para mim e tentou dizer qualquer coisa que não percebi - não falava inglês, e eu não entendia outra coisa...Assim, levou o meu bilhete e procurou alguém que falasse as duas líguas; este rapaz olhou desapontado para mim e disse-me que o bilhete não funcionava na Bósnia, apesar de vir lá indicada a ex-Jogoslávia, como país aderente...

Perguntei-lhe quanto teria de pagar - "não é caro de certeza", disse-me ele - vasculhei a minha bolsa e encontrei uma nota de 50 kunas (7 €) que me tinha sobrado da Croácia. Mostrei a nota ao revisor dizendo que era tudo o que tinha (a verdade, portanto) e ele disse qualquer coisa como "excepcionalmente, vou aceitar kunas, mas tens que pagar o bilhete até Sarajevo." Eu fiquei parvo com a conversa, mas já estava tão farto de o aturar que disse OK-siga-a-marcha. Deu-me 1 KM (konvertible marks) de troco, que equivale a 1€.

Apanhei o autocarro de Dubrovnik para Ploce, onde apanhei o comboio para Mostar.

Sentei-me e resolvi que não iria gastar mais dinheiro nos combóios da Bósnia; decidi ir mesmo até Sarajevo. Em Mostar, entrou uma família bósnia, creio, duas mães, um filho a dormir, um outro irrequieto e uma adolescente que via a MTV.

O míudo queria vir para a janela; mas eu não deixei e disse-lhe (dentro das limitações da circunstância linguística) que eu ainda era mais pequenino do que ele porque vinha de muito longe e era a primeira vez que andava naquele comboio. Mostrei-lhe um mapa da Europa e apontei a distância que existe entre Portugal e Bósnia. Ele, de pirralho choramingas, passou a tímido observador e, 10 minutos depois, já queria que eu brincásse com os seus carrinhos em miniatura.

Entretanto, depois da minha primeira conversa sobre a guerra (com a mãe que arranhava um pouco de Inglês), a tímida adolescente deixou de ser tímida, começou a falar num Inglês irrepreensível sobre os complicados assuntos de que nem eu estava bem informado...

Em uma frase; esta adolescente começou a falar e nunca mais parou; cada vez que terminava de fazer a sua exposição "sábia" de um assunto, arranjava logo outro que a mantinha a falar (e eu, a ouvir...) na próxima meia-hora...acabei por lhe dizer o que achei "tens uma inteligência impressionante, espero que vás para Hollywood, como ambicionas" porque, sim, entre outras coisas (como casar comigo...), ela queria ser actriz.

Se tivesse parado em Mostar, teria chegado a uma boa hora para arranjar uma cama e outros bens essenciais, mas não foi isso que aconteceu...

Cheguei a Sarajevo por volta das 22:00, a primeira coisa que fiz foi procura uma ATM. Esta estação ferroviária foi a única (de todo o trajecto do Inter-rail) em que não encontrei multibanco...

Assim, sozinho, teso, de mochila às costas e sem cama para passar a noite, saí da estação e tentei falar com as poucas pessoas que passavam; nenhuma falava Inglês: "Speak German?", perguntavam, e eu, desesperado, simplesmente abanava negativamente a cabeça.

Passei num quiosque onde encontrei uma jovem que arranhava Inglês; perguntei-lhe se existiam ATM's por perto e ela sorriu e disse que não...Posto isto, eu expliquei-lhe que apenas tinha 1 KM comigo e uns números de telefone de possíveis locais para ficar a dormir (do guia da Lonely Planet); ela disse-me que não existiam cabines de moedas em Sarajevo e gentilmente emprestou-me o seu cartão para eu tentar a minha sorte ("Just give it back to me when you finish...").

O primeiro, não atendeu; o segundo e o terceiro eram FAX; o quarto era um homem, com sotaque pseudo-indiano que só sabia dizer "no problemo!"..."Good night, I need acommodation for tonight." - "No problemo, no problemo!" - "And who can I go in your place?" - "No problemo, no problemo!"...Ficamos nisto durante uns dois minutos, até que desliguei.

Regressei à jovem do quiosque e comuniquei-lhe a minha infrutividade...perguntei-lhe se ela não tinha alguma ideia brilhante para a minha situação: "Well, I know a place called Banana City...you have to take two trams to reach there; with the money you have, you could only pay one tram ticket, so you're going to explain to the first driver your situation...I'm sure he will understand!"

E assim foi, o motorista não percebeu nada da minha conversa mas foi um porreiro! deixou-me andar de borla e indicou-me onde apanharia o segundo tram.

Gastei a única moeda de KM que tinha num bilhete de tram para o Banana City. O segundo motorista avisou-me quando chegámos à respectiva paragem.

Tudo em Sarajevo é escuro...os problemas da iluminação pública são comuns fora do centro da cidade; o Banana City não é excepção...

Ao entrar percebi que estava numa espécie de enorme mercado a céu aberto; havia homens a carregar centenas de caixas de bananas para os postos de venda; preparavam a manhã seguinte. A quantidade de lixo no chão era tão grande que, para se andar, era preciso dar pontapés nas caixas de cartão. Por esta altura eu perguntava-me: vim dormir para um mercado??

Quinze minutos a andar foram suficientes para encontrar a barraca de madeira onde ia dormir. Entrei, na recepção estava uma bonita jovem sob o efeito de uma droga que não consegui reconhecer...falava bem Inglês. "You're lucky! We just have one single room avaiable, and it's for you!". Perguntei-lhe se poderia comer qualquer coisa pagando no dia seguite, "sure we have a restaurant upstairs, I will put it in your bill and you pay tomorrow".

Comi, fui para o meu quarto, liguei a televisão, enrrolei-me no meu saco-cama e adormeci.

sexta-feira, novembro 19, 2004

Coisas da Animação - Kunstbar

É que, ás vezes, vem-nos a sede da arte, essa bebida pesada...

A consumir em excesso e sem moderação.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Coisas da Música - Morphine

Quem disse alguma vez: agora não me apetece Morphine?

É que é preciso uma otite...

Uma bateria, dois saxofones para dois pulmões, duas cordas e um slide para um baixo, uma voz.

Simples não?

Não me canso de ouvir Morphine, nunca me cansei e não sei se algum dia hei-de cansar-me.

O final dramático que a banda teve trouxe a inpiração para criar uma formação qualquer com os restantes elementos do grupo; de momento não me recordo do nome mas creio que não foi muito mais do que uma ideia...
Formam-se bandas-tributo para tudo, menos para Morphine. Apetecia-me ver algo parecido com Morphine, ao vivo; que saudades...

Estivemos e estamos contigo Sandman; e, sabemos, não foste calado para a cova...

Para quando um tributo a Morphine em Portugal?

Espero que para breve.



Ver mais é aqui.

Coisas da Literatura - Moon Palace

É do Paul Auster de que vos falo. São do Moon Palace os excertos.

As it turned out, the boxes were quite useful to me in that state. The apartment on 112th Street was unfurnished, and rather than squander my funds on things I did not want and could not afford, I converted the boxes into several pieces of “imaginary furniture.” It was little like working on a puzzle: grouping the cartons into various modular configurations, lining them up in rows, stacking them one on top of another, arranging and rearranging them until they finally began to resemble household objects. One set of sixteen served as the support for my mattress, another set of twelve became a table, others of seven became chairs, another of two became a bedstand, and so on. The overall effect was rather monochromatic, what with that somber light brown everywhere you looked, but I could not help feeling proud of my resoursefulness.



Several days after my visit to the music store, a minor disaster nearly drowned me. The two eggs I was about to place in a pot of water and boil up for my daily meal slipped through my fingers and broke on the floor. Those were the last two eggs of my current supply, and I could not help feeling that this was the cruelest, most terrible thing that had ever happened to me. The eggs landed whit an ugly splat. I remember standing there in horror as they oozed out over the floor. The sunny, translucent innards sank into the cracks, and suddenly there was muck everywhere, a bobbing slush of slime and shell. One yolk had miraculously survived the fall, but when I bent down to scoop it up. It slid out from under the spoon and broke apart. I felt as though a star were exploding, as though a great sun had just died. The yellow spread over the white and then began to swirl, turning into a vast nebula, a debris of interstellar gases. It was all too much for me – the last, imponderable straw. When this happened, I actually sat down and cried.



I slept in the park every night after that. It became a sanctuary for me, a refuge of inwardness against the grinding demands of the streets. There were eight hundred and forty acres to roam in, and unlike the massive gridwork of buildings and towers that loomed outside the perimeter, the park offered me the possibility of solitude, of separating myself from the rest of the world. In the streets, everything is bodies and commotion, and like it or not, you cannot enter them without adhering to a rigid protocol of behavior. To walk among the crowd means never going faster than anyone else, never lagging behind your neighbor, never doing anything to disrupt the flow of human traffic. If you play by the rules of this game, people will tend to ignore you. There is a particular glaze that comes over the eyes of New Yorkers when they walk through the streets, a natural and perhaps necessary form of indifference to others. It doesn’t matter how you look, for example. Outrageous costumes, bizarre hairdos, T-shirts with obscene slogans printed across them – no one pays attention to such things. On the other hand, the way you act inside your clothes is of the utmost importance. Odd gestures of any kind are automatically taken as a threat. Talking out loud to yourself, scratching your body, looking someone directly in the eye: these deviations can trigger off hostile and sometimes violent reactions from those around you. You must not stagger or swoon, you must not clutch the walls, you must not sing, for all forms of spontaneous or involuntary behaviour are sure to elicit states, caustic remarks, and even an occasional shove or kick in the shins.



If the streets forced me to see myself as others saw me, the park gave me a chance to return to my inner life, to hold on to myself purely in terms of what was happening inside me. It is possible to survive without a roof over your head, I discovered, but you cannot live without establishing an equilibrium between the inner and outer. The park did that for me. It was not quite a home, perhaps, but for want of any other shelter, it came very close.



Those were happy moments for me, and they helped to carry me trough some of the darker stretches when my luck seemed to have run out. Perhaps that was all I had set out to prove in the first place: that once you throw your life to the winds, you will discover things you had never known before, things that cannot be learned under any other circumstances.



I was half-dead from hunger, but whenever something good happened to me, I did not attribute it to chance so much as to a special state of mind. If I was able to maintain the proper balance between desire and indifference, I felt that I could somehow will the universe to respond to me. How else was I to judge the extraordinary acts of generosity that I experienced in Central Park? I never asked anyone for anything, I never budged from my spot, and yet strangers were continually coming up to me and giving me help. There must have been some force emanating from me into the world, I thought, some indefinable something that made people want to do this. As time went on, I began to notice that good things happened to me only when I stopped wishing for them. If that was true, then the reverse was true as well: wishing too much for things would prevent them from happening. (…) In other words, you got what you wanted only by not wanting it.



Coisas do Cinema-O sublime

Deixo-vos com um excerto de um state-of-art;
Cinema e Arquitectura - A Dialéctica das cumplicidades

1.2 – A intensidade psicológica e a ideia de sublime

Question: What is the deep logic of your films?
Hitch’s answer: To make the spectator suffer.

Existem, para todos nós, momentos de extrema beleza. Esses momentos podem acontecer, e geralmente acontecem, por acaso. A arte não é, de forma nenhuma, o único veículo que os proporciona, mas proporcioná-los é um dos seus grandes objectivos.
Quando, há um tempo, lia o Thinking Architecture, de Peter Zumthor, surpreendeu-me a perfeição da expressão aplicada para definir esses momentos: The Hard Core of Beauty. Pareceu-me a forma mais estimulante de definir aquilo que persigo, quando faço projecto de arquitectura.

Existem momentos em cinema, tal como na arquitectura, que vibram com esta intensidade; para não falar dos filmes de Tarkovsky, quem não se recorda de Shangri-la do Lost Horizon, de Frank Capra? Quem não se recorda da cena introdutória do 8 e Mezzo, de Fellini? Quem não se recorda dos sapos a choverem do céu do Magnólia, de Paul Anderson?

A intensidade destes registos encontra paralelos na arquitectura, exemplos disso são as grandes pirâmides do Egipto, a Ópera de Sydney, ou a casa da cascata de Frank Lloyd Wright. De alguma forma, é possível criar coisas que quase universalmente se tornam sublimes e, portanto, imperecíveis na memória de todos nós; na memória da nossa cultura. Estas imagens, partilhadas por cinema e arquitectura, são o objecto de análise neste ponto.

Quando falo de sublime, não falo apenas no positivismo da beleza; é muito mais abrangente que isso. Entendo o sublime como a forma mais interessante e, se quisermos, genial, de mostrar uma determinada imagem. E, nesta perspectiva, é tão possível chamar sublime ao momento em as duas mulheres do Mullholand Drive se beijam, como ao momento (passo a expressão...) da violação no Irreverssible; é tão possível chamar sublime às termas em Vals, Suíça, de Zumthor, como à zona industrial Norte do Parque das Nações.

Uma (outra) das coisas que aprendi com Manuel Vicente é que o caminho para o sublime encontra-se lidando com os aspectos circunstanciais do espaço; das pré-existências pode aproveitar-se o mau, o banal e o bom para fazer arquitectura. Normalmente, o bom conserva-se, o banal exponencia-se, e o mau assume-se. Um excelente exemplo desta forma de projectar é o projecto para reordenamento...em..., de Steven Holl. Um simples pórtico de betão é a síntese para a cor do caos, a ordem possível dentro deste, e para este em si. Esta amplificação estética também acontece no cinema, por exemplo no Psycho, de Hitchcock, onde a partir de uma composição simples de um bloco vertical (a casa pseudo-gótica) e um bloco horizontal (o motel) estabelece a atmosfera perfeita para o suspense pretendido no desenrolar da acção; balança uma atmosfera idílico-relaxada com outra assustadora, por ser enigmática.

Manuel Vicente acrescenta que este savez faire, tem muito que ver com o savez vivre ; cita uma passagem do Saint Genet, de Sartre, onde este pergunta àquele porque é que, sendo uma pessoa tão criativa e artisticamente competente, continua a lavar sanitários em móteis. Jean Jenet responde que para ele está tudo bem como está, pois sendo homossexual em tempos de censura, aquele é o único espaço onde pode, legitimamente, ter contactos eróticos com pessoas do mesmo sexo; Eu adoro o cheiro dos urinóis!

Isto para reforçar a ideia de que o mau, não é necessariamente mau, e que, muitas vezes pelo veículo de uma doce perversão, é possível torná-lo numa coisa sublime.
Passemos a uma análise mais racional.
Karsten Harries defende que: Architecture is not only about domesticating space, it is also a deep defense against the terror of time. The language of beauty is essentially the language of timeless reality.

Este é o patamar terreno do sublime; se algo for estimulante para nos alienar na nossa alienação e exterioridade naturais, então podemos, desde logo, considerá-lo estético. Mas o sublime, ainda que podendo resultar de um forte conjunto de estética terrena (chamemos-lhe assim), tem que ver com a estética extra-terrena; com a nossa capacidade alucinatória de delírio. Para isso, é necessário existirem dispositivos que activem a nossa imaginação, tanto, que fiquemos totalmente absorvidos com a nossa comoção; I can no longer think what I want to think. My thoughts have been replaced by moving images, para citar uma frase de Georger Duhamel.

Por outro lado, são necessários dispositivos que conservem essa abstracção, pois o sublime é frágil, como todos os outros estados que não correspondam à natural condição humana. Para ilustrar esta fragilidade, existe um poema sublime da Mensagem de Fernando Pessoa:
As ilhas afortunadas
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

Juhani Pallasmaa menciona um dado importante: The great mystery of artistic impact is that a fragment is capable of representing the whole.

Este aspecto pode ser, evidentemente, um amigo ou um inimigo do sublime. Creio que, aqui, faz sentido introduzir o conceito de musicalidade. O sublime também vive como uma sinfonia; necessita de ser composto e harmonizado; o ritmo é fundamental para o correcto dimensionamento estético e para o continuum do sublime.

Outra situação que este autor refere é: The value of a great film is not in the images projected in front of our eyes, but in the images and feelings that the film entices from our soul. e continua, com um comentário de Fritz Lang ao seu filme M: There is no violence in my film M, or when there is, it occurs behind the scenes, as it were. Let's take an example. You will remember the sequence where a little girl is murdered. All you see is a ball rolling and then stopping. Then a balloon flying off and getting caught in some telephone wires (...) The violence is in your mind.

Não descurando o valor do que se encontra escrito, gostaria de acrescentar que é possível seduzir as imagens e sentimentos da nossa alma com imagens cruas e violentas; há imagens que a nossa alma simplesmente (ainda) não tem...a violência pode ser sublime, muito embora – infelizmente – seja muitas vezes utilizada de forma gratuita; tanto na arquitectura como no cinema. Seria possível imaginar o sublime final de Boys don’t Cry sem o recurso às chocantes imagens? Qual o tamanho da diferença entre uma pessoa que imagina Auschwitz, para uma outra que já lá tenha estado?

O sublime não é aquilo a que se chama uma teoria; e tão-pouco é algo que se possa sistematizar. Resulta antes da boa combinação de todos os factores que, juntos, tornam uma obra complexa. No sublime não há razão; nem para quem cria, nem para quem lê. O sublime está no mundo, à espera que alguém o descubra e, portanto, não se inventa; ele existe. É a descoberta daquilo que temos e que não sabemos; é a exponencial dos nossos sentidos; é, em limite, a nossa vulnerabilidade.

Lost Horizon, 8 e mezzo, Magnólia.

Coisas da arquitectura - UIA: Celebração das Cidades

É certo que aqui se falará de arquitectura, como de muitas outras coisas. É certo que, de momento nada me ocorre para escrever; talvez porque é disso que têm ardido as minhas horas nos últimos anos, e porque a pachorra para pensar arquitectura se esgota durante o dia a fazer, quem sabe, coisas menos úteis.

Assim, deêm-me lume, e a água que o leva.

Fiquem-se com algumas imagens de uma das propostas vencedoras, apuradas há coisa de um ou dois meses, no concurso internacional Celebração das Cidades 2003/2004, categoria de estudantes.


Projecto simplesm/ sobre AUTOCARROS. PARAGENS. (Lisboa)





Autoria:

André Albuquerque
Vasco Costa Martins
Joana Couto
António Ginete


Fiquem-se também com qualquer coisa do mesmo, mas em Macau e na Categoria de profissionais.

Mass Pedestrian Conveyor System (Macau)




Há quem diga que, sempre que vê esta fotomontagem, tem vontade de chorar...

Autoria:
Manuel Vicente
Rui Leão
Helena Alcoforado
Inês Pinto
José Cláudio
Sérgio Xavier

Hasta la Pasta.

Mais trabalho...

Ora cá está mais uma coisa na vida. Ora cá está o mais-que-fazer. Ora cá está o-que-mais-faltava. Ora cá está mais um poderoso virús para vos acalmar as doenças. Ora cá está o interesse que faz correr as criancinhas ao carrinho dos gelados. Ora cá está o sítio que, se fosse físico, custava dinheiro. Ora cá está a folha branca, por enquanto.

Não sei o que será; mas sei que será.

Até já.